Páginas

quinta-feira, 13 de março de 2014

A noite de Piaf

Era quase meia-noite. Desci do ônibus sozinho. A rua estava triste para uma sexta-feira. Noite estranha. Olhei o apartamento quando ainda estava no meio do quarteirão. Não estava vazio. A luz acesa do quarto anunciava. Pensei na possibilidade de Laura ter esquecido de apagá-la. Isso não era uma atitude comum para ela. Mas, convenhamos, até Laura poderia esquecer uma luz acesa. 
Subi as escadas pensando na forma como ia infernizar a vida dela durante uma semana por conta desse esquecimento. Seria mais ou menos o que ela faria se fosse eu. E isso acontece sempre. 
Abri a porta ainda absorto nesses pensamentos. Som ligado na sala. Estranho. Claro! Laura estava em casa. Foi doloroso me desfazer do brilhante plano construído em ofegantes quatro minutos e meio. Estava ficando lento, pensei. Alguns passos. Roupas pelo chão. Garrafa seca de vinho branco sobre a mesa. Chuveiro. 
Em um segundo fiquei paralisado. Como pude esquecer? Hoje era o dia do encontro de Laura com aquele babaca. Eu nem conhecia aquele babaca, mas, internamente, sempre me referia a ele assim. Aquele babaca.
Ele viria às vinte horas, tomaria vinho branco com Laura, comeria o delicioso risoto de camarão e escutaria as músicas da playlist “hot party” cuidadosamente selecionadas por ela durante anos de primeiros encontros. Eu conhecia aquela seleção de músicas porque ela me fez opinar sobre cada uma delas certa madrugada de ócio e riso fácil. Nunca entendi o porquê do nome “hot party”. Naquela seleção só tinha música clássica e Piaf. Laura e suas esquisitices. 
Tocava a Sinfonietta de Janáček. Isso significa que o som estava tocando há cerca de uma hora e cinquenta minutos. Tive vergonha de seguir os rastros das roupas pelo chão. Vergonha não. Medo. Não, não era medo. Era raiva. Não fazia ideia do motivo desse sentimento. Lembro de ter ficado vermelho. Pelo menos é como me imagino agora, lembrando disso. Estava mais ofegante do que quando subi as escadas. 
Senti vontade de abrir a porta do banheiro. Ímpeto. Não o fiz, claro. Mas quase. Eu estava confuso demais para qualquer ação. Foi nesse momento que ouvi a maçaneta da porta girando. Corri. Tropecei nas roupas pelo chão e caí no corredor, entre a cozinha e meu quarto. 
Não queria abrir o olho e ver a cara daquele babaca olhando para mim, rindo da minha desgraça. 
“Você está bem?” 
Era a voz de Laura, doce e terna, mesmo em meio à gargalhadas. Lembro de estar com os olhos fechados. Lembro de ter tido vontade de chorar. Lembro de ter me levantado rápido procurando o pescoço daquele babaca para impedir que ele risse de mim. Lembro de ter sentido a mão de Laura em meu rosto. 
“Eu bebo um litro de vinho e tu que fica às quedas, é?”
Eu estava em seus braços, em seu colo. Sentia aquele cheiro bom que Laura tem a qualquer hora do dia, tendo saído ou não de um banho. E eu já tinha me esquecido daquele babaca.
“Que babaca?” 
Esse que veio encontrar com você hoje. Ah, Laura, me desculpe, mas eu sempre me refiro a ele como “aquele babaca”. 
Laura riu. E eu já estava de olhos abertos. A primeira coisa que vi foram seus dentes. Depois suas amígdalas. E eu ri junto. Mas não sabia o porquê.
"Você tá certo. Ele é mesmo um babaca".
O babaca não estava lá. Ele não tinha aparecido. Furou com Laura. Uma ligação sequer o babaca fez. Uma mensagem. Nada.
"Me deixou aqui plantada a noite toda. Passei a tarde cozinhando, gastei o resto do meu dinheiro com vinho e camarão, o resto do meu perfume francês e ele nada... Você tá com fome?"
Até que estou. E estava.
"Vou esquentar a comida. Deve tá gelada. Tem outro vinho. Abre?"
Quando menos percebi Laura já estava na cozinha. Levantei devagar. Inspirei e expirei rapidamente o ar várias vezes. Isso sempre me ajudava a me sentir vivo e a acionar minhas ideias. Não conseguia entender aquilo tudo. Por que eu estava tão feliz? E por que eu tinha passado o dia todo tão chateado? Como pude esquecer que Laura tinha um encontro? Será que esqueci? Ou será que isso foi o que mais lembrei durante todo o dia?
"O vinho! Tá difícil isso aí? Quer que eu abra?"
Pronto.
“Tim-tim!” Laura disse enquanto eu servia a segunda taça. O que vamos brindar? Perguntei.
"Eu sempre brindo à vida. Mas hoje quero brindar à Piaf".
Não questionei. Ela devia ter seus motivos.
"A comida deve estar pronta. Tira do micro-ondas?"
Não sei porque você insiste em colocar mais tempo do que aquele que você sabe que é necessário. Ela sempre fazia isso. Eu sempre reclamava.
-"Sou lenta. Sempre acho que vou gastar mais tempo para fazer algo do que realmente gasto. Aí vou estendendo essa lentidão para as coisas, para as pessoas. Assim sou sempre surpreendida."
Laura e suas esquisitices, pensei. Eu devo ter pensado isso e suspirado. Devo mesmo ter sorrido. Laura me olhou com aqueles olhos de Sherllock Holmes e perguntou:
"Por que você está tão feliz?"
Fiquei desconcertado e surpreso. Eu estava feliz?
"Era tão bom assim o filme?"
Na verdade não. Saí no meio da sessão. Não recomendo.
"Já sei! Encontrou alguma raridade no sebo da 25 de março. Qual livro?"
Balancei negativamente a cabeça.
"Tá apaixonado?! Olha que já estava em tempo. Quem é? A garota do bar do vinil?"
Franzi as sobrancelhas.
"Aquela ruiva... você passou a noite cantando para ela... Me fez fazer a segunda voz na “você é o grande amor da minha vida”. Foi engraçado. Ela é bonita, apesar de não ser boa de papo. Não se pode querer tudo, afinal."
Ri porque lembrei da noite citada por Laura. O engraçado é que lembro mais de fazer dueto com ela no karaokê do que da ruiva. Eu nem lembrava da ruiva.
"Já sei! É a bonitona da livraria! Aquela alta, das pernas compridas e seios pequenos. Não se pode querer tudo..."
Não deixei ela terminar a frase. Fiz que não com a cabeça. Já estava decidido a mudar o rumo da conversa quando ela me interrompeu.
"Claro! Como eu não desconfiei? Me diz, como você pôde me enrolar esse tempo todo?"
Gelei. O que estava tão claro para ela sobre mim? O que Laura descobrira que eu ainda sequer desconfiava a meu respeito?
"A trocadora do ônibus! Você tem andado muito de ônibus ultimamente. E sempre nos mesmos horários! Conseguiu o telefone dela? Marcou o encontro? Vai ser aqui? Quando?"
Gargalhei. Mais de alívio do que pelo que Laura falava.
Desiste Laura. Não é isso. Não sei porque você está dizendo que estou feliz. Você tem cada uma... a trocadora... Essa foi boa. Hahahaha. Você sabe que estou andando de ônibus para economizar. Deixa de invenção.
Laura me fitou. Ficou parada bem na minha frente por um minuto ou mais. Ela não parecia desconfortável com isso. Não faço ideia do que ela estava pensando ou querendo dizer. Senti o seu olhar profundamente em mim, percorrendo meu estômago, minhas vísceras, minha corrente sanguínea, minhas tripas. Não era singelo o olhar, tampouco algo temeroso ou enigmático. Ela simplesmente me olhava. Como se estivesse lendo minha'lma.
"A comida vai esfriar."
Tomei um gole do vinho. Comi o risoto. Elogiei várias vezes a comida. Laura comia devagar, como sempre. Repeti uma ou duas vezes enquanto ela terminava o primeiro e único prato. Trocamos informações sobre contas de água e luz, reunião do condomínio, literatura e campeonato brasileiro de futebol enquanto comíamos. Decidimos assistir juntos no bar da esquina a semifinal do campeonato. Nenhum dos nossos times jogaria. Mas era sempre divertido assistir futebol com Laura.
"A louça é contigo."
Encheu a taça com mais vinho e foi ao quarto. Somente nesse momento me de conta que Laura estava somente de toalha. Foi nesse dia que reparei seus ombros. Lindos. Do quarto, ela gritou:
"Não esquece de enxugar bem os talheres..."
… se não enferruja, falamos juntos.
Eu já estava guardando os pratos quando senti a mão de Laura em meus ombros. Ela me conduziu pra sala. O local estava particularmente bonito com a iluminação da lua crescente pela cortina azul claro claríssimo. Tocava “La Vie em Rose”. Segurei firme e singelamente a cintura de Laura. Ela encostou a cabeça em meu peito. 
Eu sentia o cheiro bom de Laura misturado ao cheiro do cabelo recém-lavado. Me embriaguei naquela dança e naquele cheiro. Não queria nunca mais sair daquele lugar. Vislumbrei Laura abraçada a mim em uma tarde de sábado, depois do almoço feito com as sobras da janta de sexta. Senti o gosto do café-da-manhã que eu servia na cama para ela todas as segundas-feiras, encorajando-a para mais uma semana de labuta. Me vi velhinho, caminhando de mãos dadas com ela, que continuava linda, com aqueles olhos... Ah! Os olhos de Laura.
"Eu teria dançado essa música com aquele babaca."
Laura suspirou.
"Mas, de alguma forma, gostei mais dessa noite como ela ficou do que como foi planejada. Vai entender..."
Enquanto “Boulevard Du Crime” começava a tocar, Laura me beijou no rosto e disse um “boa noite” sussurrado em meu ouvido. Foi para o quarto, ligou o abajur e encostou a porta. Pude ouvi-la caminhando pelo quarto, deitando na cama e lendo um livro. Apostei comigo mesmo que era “Coisas Frágeis”, de Neil Gaiman. Pude confirmar isso anos mais tarde. A música acabou e entendi o porquê de “hot party”.
No dia seguinte, conforme combinado, fomos juntos ao bar da esquina assistir ao jogo. Laura saiu no meio do segundo tempo. Não entendi, mas continuei com os amigos no bar. Horas depois, ao chegar em casa, encontrei um bilhete na porta do meu quarto:
“Vou passar uns dias fora. Antecipei minhas férias. Deixei minha parte das contas pagas. Se eu for passar mais tempo do que o previsto, transfiro uma grana para tua conta. Fique bem, se alimente direitinho e aproveite o apartamento bem muito durante esse tempo sozinho (rs)... Ah! E enxugue bem os talheres. Beijo no zói! Laura.”
Laura e suas esquisitices.
Ouvi e brindei Piaf durante vinte e sete dias ininterruptos. No vigésimo oitavo dia a campainha tocou.
"Esqueci a chave!"
Antes dela terminar a frase eu já a tinha em meus braços. Foi um longo abraço. Ensaiei todos os dias as palavras de raiva e decepção que eu a diria. “Como pôde?” “Por que você fez isso?” “Estou magoado com você!”. O máximo que consegui foi:
Saudade!
Laura me apertou forte. Aquele cheiro dela de novo tão perto. Aquele cheiro que busquei por vinte e sete dias pela casa toda, entre os livros, entre as paredes, em mim.
"A gente precisa conversar."
Confirmei com a cabeça. Puxei uma cadeira e aguardei que ali se iniciasse uma longa conversa, onde certamente terminaríamos aos beijos, ao som de Piaf e roupas espalhadas pelo chão.
"Estou indo morar fora do Brasil por dois anos. Passei no mestrado. E com bolsa! Acertei tudo no trabalho. Antecipei as férias para descansar, pensar, organizar as ideias. Decidi que não posso perder a oportunidade. Não é? Sei que você concorda comigo. E eu sei que você me daria a maior força para seguir com isso, por isso não comentei nada contigo. Queria pensar por mim, sem a pressão do sim ou do não de alguém a martelar minha cabeça. Um amigo meu topa dividir o apartamento. É claro que não fechei com ele, quero que vocês se conheçam.... daí você vê se rola. Você fica com meu quarto, tá? Tem banheiro e tal... Tô tão feliz!"
Abracei Laura. Queria prendê-la ali comigo. Para sempre. Não desejei boa sorte, não falei “parabéns”... nada. Somente a abracei, mesmo assim ela agradeceu.
Quando você vai?
"Tenho ainda mais de dois meses aqui. Dá tempo eu me organizar, acho. Você me ajuda?"
Claro. Faremos esses dois meses serem uma eternidade.

Sorriu ao franzir levemente as sobrancelhas. Correu pro quarto. Laura banhava-se. Enquanto fazia eco no pequeno apartamento a palavra eternidade.

Um fragmento de Neta. Evenice Netíssima.

Nenhum comentário: