Era quase
meia-noite. Desci do ônibus sozinho. A rua estava triste para uma
sexta-feira. Noite estranha. Olhei o apartamento quando ainda estava
no meio do quarteirão. Não estava vazio. A luz acesa do quarto
anunciava. Pensei na possibilidade de Laura ter esquecido de
apagá-la. Isso não era uma atitude comum para ela. Mas,
convenhamos, até Laura poderia esquecer uma luz acesa.
Subi as
escadas pensando na forma como ia infernizar a vida dela durante uma
semana por conta desse esquecimento. Seria mais ou menos o que ela
faria se fosse eu. E isso acontece sempre.
Abri a porta ainda absorto
nesses pensamentos. Som ligado na sala. Estranho. Claro! Laura estava
em casa. Foi doloroso me desfazer do brilhante plano construído em
ofegantes quatro minutos e meio. Estava ficando lento, pensei. Alguns
passos. Roupas pelo chão. Garrafa seca de vinho branco sobre a mesa.
Chuveiro.
Em um segundo fiquei paralisado. Como pude esquecer? Hoje
era o dia do encontro de Laura com aquele babaca. Eu nem conhecia
aquele babaca, mas, internamente, sempre me referia a ele assim.
Aquele babaca.
Ele viria às vinte horas, tomaria vinho branco com
Laura, comeria o delicioso risoto de camarão e escutaria as músicas
da playlist “hot party” cuidadosamente selecionadas por ela
durante anos de primeiros encontros. Eu conhecia aquela seleção de
músicas porque ela me fez opinar sobre cada uma delas certa
madrugada de ócio e riso fácil. Nunca entendi o porquê do nome
“hot party”. Naquela seleção só tinha música clássica e
Piaf. Laura e suas esquisitices.
Tocava a Sinfonietta
de Janáček. Isso significa que o som estava tocando há
cerca de uma hora e cinquenta minutos. Tive vergonha de seguir os
rastros das roupas pelo chão. Vergonha não. Medo. Não, não era
medo. Era raiva. Não fazia ideia do motivo desse sentimento. Lembro
de ter ficado vermelho. Pelo menos é como me imagino agora,
lembrando disso. Estava mais ofegante do que quando subi as escadas.
Senti vontade de abrir a porta do banheiro. Ímpeto.
Não o fiz, claro. Mas quase. Eu estava confuso demais para qualquer
ação. Foi nesse momento que ouvi a maçaneta da porta girando.
Corri. Tropecei nas roupas pelo chão e caí no corredor, entre a
cozinha e meu quarto.
Não queria abrir o olho e ver a cara daquele
babaca olhando para mim, rindo da minha desgraça.
“Você está
bem?”
Era a voz de Laura, doce e terna, mesmo em meio à
gargalhadas. Lembro de estar com os olhos fechados. Lembro de ter
tido vontade de chorar. Lembro de ter me levantado rápido procurando
o pescoço daquele babaca para impedir que ele risse de mim. Lembro
de ter sentido a mão de Laura em meu rosto.
“Eu bebo um litro de
vinho e tu que fica às quedas, é?”
Eu estava em seus braços, em
seu colo. Sentia aquele cheiro bom que Laura tem a qualquer hora do
dia, tendo saído ou não de um banho. E eu já tinha me esquecido
daquele babaca.
“Que babaca?”
Esse que veio encontrar com você
hoje. Ah, Laura, me desculpe, mas eu sempre me refiro a ele como
“aquele babaca”.
Laura riu. E eu já estava de olhos abertos. A
primeira coisa que vi foram seus dentes. Depois suas amígdalas. E eu
ri junto. Mas não sabia o porquê.
"Você
tá certo. Ele é mesmo um babaca".
O babaca
não estava lá. Ele não tinha aparecido. Furou com Laura. Uma
ligação sequer o babaca fez. Uma mensagem. Nada.
"Me
deixou aqui plantada a noite toda. Passei a tarde cozinhando, gastei
o resto do meu dinheiro com vinho e camarão, o resto do meu perfume
francês e ele nada... Você tá com fome?"
Até
que estou. E estava.
"Vou esquentar a comida. Deve tá gelada. Tem outro vinho. Abre?"
Quando
menos percebi Laura já estava na cozinha. Levantei devagar. Inspirei
e expirei rapidamente o ar várias vezes. Isso sempre me ajudava a me
sentir vivo e a acionar minhas ideias. Não conseguia entender aquilo
tudo. Por que eu estava tão feliz? E por que eu tinha passado o dia
todo tão chateado? Como pude esquecer que Laura tinha um encontro?
Será que esqueci? Ou será que isso foi o que mais lembrei durante
todo o dia?
"O
vinho! Tá difícil isso aí? Quer que eu abra?"
Pronto.
“Tim-tim!”
Laura disse enquanto eu servia a segunda taça. O que vamos brindar?
Perguntei.
"Eu
sempre brindo à vida. Mas hoje quero brindar à Piaf".
Não
questionei. Ela devia ter seus motivos.
"A
comida deve estar pronta. Tira do micro-ondas?"
Não
sei porque você insiste em colocar mais tempo do que aquele que você
sabe que é necessário. Ela sempre fazia isso. Eu sempre reclamava.
-"Sou
lenta. Sempre acho que vou gastar mais tempo para fazer algo do que
realmente gasto. Aí vou estendendo essa lentidão para as coisas,
para as pessoas. Assim sou sempre surpreendida."
Laura e
suas esquisitices, pensei. Eu devo ter pensado isso e suspirado. Devo
mesmo ter sorrido. Laura me olhou com aqueles olhos de Sherllock
Holmes e perguntou:
"Por que
você está tão feliz?"
Fiquei
desconcertado e surpreso. Eu estava feliz?
"Era tão
bom assim o filme?"
Na
verdade não. Saí no meio da sessão. Não recomendo.
"Já
sei! Encontrou alguma raridade no sebo da 25 de março. Qual livro?"
Balancei
negativamente a cabeça.
"Tá
apaixonado?! Olha que já estava em tempo. Quem é? A garota do bar do vinil?"
Franzi as
sobrancelhas.
"Aquela
ruiva... você passou a noite cantando para ela... Me fez fazer a
segunda voz na “você é o grande amor da minha vida”. Foi
engraçado. Ela é bonita, apesar de não ser boa de papo. Não se
pode querer tudo, afinal."
Ri porque
lembrei da noite citada por Laura. O engraçado é que lembro mais de
fazer dueto com ela no karaokê do que da ruiva. Eu nem lembrava da
ruiva.
"Já
sei! É a bonitona da livraria! Aquela alta, das pernas compridas e
seios pequenos. Não se pode querer tudo..."
Não
deixei ela terminar a frase. Fiz que não com a cabeça. Já estava
decidido a mudar o rumo da conversa quando ela me interrompeu.
"Claro!
Como eu não desconfiei? Me diz, como você pôde me enrolar esse
tempo todo?"
Gelei. O
que estava tão claro para ela sobre mim? O que Laura descobrira que
eu ainda sequer desconfiava a meu respeito?
"A
trocadora do ônibus! Você tem andado muito de ônibus ultimamente.
E sempre nos mesmos horários! Conseguiu o telefone dela? Marcou o
encontro? Vai ser aqui? Quando?"
Gargalhei.
Mais de alívio do que pelo que Laura falava.
Desiste
Laura. Não é isso. Não sei porque você está dizendo que estou
feliz. Você tem cada uma... a trocadora... Essa foi boa. Hahahaha.
Você sabe que estou andando de ônibus para economizar. Deixa de
invenção.
Laura me
fitou. Ficou parada bem na minha frente por um minuto ou mais. Ela
não parecia desconfortável com isso. Não faço ideia do que ela
estava pensando ou querendo dizer. Senti o seu olhar profundamente em
mim, percorrendo meu estômago, minhas vísceras, minha corrente
sanguínea, minhas tripas. Não era singelo o olhar, tampouco algo
temeroso ou enigmático. Ela simplesmente me olhava. Como se
estivesse lendo minha'lma.
"A
comida vai esfriar."
Tomei um
gole do vinho. Comi o risoto. Elogiei várias vezes a comida. Laura
comia devagar, como sempre. Repeti uma ou duas vezes enquanto ela
terminava o primeiro e único prato. Trocamos informações sobre
contas de água e luz, reunião do condomínio, literatura e
campeonato brasileiro de futebol enquanto comíamos. Decidimos
assistir juntos no bar da esquina a semifinal do campeonato. Nenhum
dos nossos times jogaria. Mas era sempre divertido assistir futebol
com Laura.
"A louça
é contigo."
Encheu a
taça com mais vinho e foi ao quarto. Somente nesse momento me de conta que Laura estava somente de toalha. Foi nesse dia que reparei seus
ombros. Lindos. Do quarto, ela gritou:
"Não
esquece de enxugar bem os talheres..."
… se
não enferruja, falamos juntos.
Eu já estava guardando os pratos quando senti a mão de Laura em
meus ombros. Ela me conduziu pra sala. O local estava particularmente
bonito com a iluminação da lua crescente pela cortina azul claro
claríssimo. Tocava “La
Vie em Rose”. Segurei
firme e singelamente a cintura de Laura. Ela encostou a cabeça em
meu peito.
Eu sentia o cheiro bom de Laura misturado ao cheiro do
cabelo recém-lavado. Me embriaguei naquela dança e naquele cheiro.
Não queria nunca mais sair daquele lugar. Vislumbrei Laura abraçada
a mim em uma tarde de sábado, depois do almoço feito com as sobras
da janta de sexta. Senti o gosto do café-da-manhã que eu servia na
cama para ela todas as segundas-feiras, encorajando-a para mais uma
semana de labuta. Me vi velhinho, caminhando de mãos dadas com ela,
que continuava linda, com aqueles olhos... Ah! Os olhos de Laura.
"Eu
teria dançado essa música com aquele babaca."
Laura
suspirou.
"Mas, de
alguma forma, gostei mais dessa noite como ela ficou do que como foi
planejada. Vai entender..."
Enquanto
“Boulevard Du Crime” começava a tocar, Laura me beijou no rosto
e disse um “boa noite” sussurrado em meu ouvido. Foi para o
quarto, ligou o abajur e encostou a porta. Pude ouvi-la caminhando
pelo quarto, deitando na cama e lendo um livro. Apostei comigo mesmo que era
“Coisas Frágeis”, de Neil Gaiman. Pude confirmar isso anos mais
tarde. A música acabou e entendi o porquê de “hot party”.
No dia
seguinte, conforme combinado, fomos juntos ao bar da esquina assistir
ao jogo. Laura saiu no meio do segundo tempo. Não entendi, mas
continuei com os amigos no bar. Horas depois, ao chegar em casa,
encontrei um bilhete na porta do meu quarto:
“Vou
passar uns dias fora. Antecipei minhas férias. Deixei minha parte
das contas pagas. Se eu for passar mais tempo do que o previsto,
transfiro uma grana para tua conta. Fique bem, se alimente direitinho
e aproveite o apartamento bem muito durante esse tempo sozinho
(rs)... Ah! E enxugue bem os talheres. Beijo no zói! Laura.”
Laura e
suas esquisitices.
Ouvi e
brindei Piaf durante vinte e sete dias ininterruptos. No vigésimo
oitavo dia a campainha tocou.
"Esqueci
a chave!"
Antes
dela terminar a frase eu já a tinha em meus braços. Foi um longo
abraço. Ensaiei todos os dias as palavras de raiva e decepção que
eu a diria. “Como pôde?” “Por que você fez isso?” “Estou
magoado com você!”. O máximo que consegui foi:
Saudade!
Laura me
apertou forte. Aquele cheiro dela de novo tão perto. Aquele cheiro
que busquei por vinte e sete dias pela casa toda, entre os livros,
entre as paredes, em mim.
"A gente
precisa conversar."
Confirmei
com a cabeça. Puxei uma cadeira e aguardei que ali se iniciasse uma
longa conversa, onde certamente terminaríamos aos beijos, ao som de
Piaf e roupas espalhadas pelo chão.
"Estou
indo morar fora do Brasil por dois anos. Passei no mestrado. E com
bolsa! Acertei tudo no trabalho. Antecipei as férias para descansar,
pensar, organizar as ideias. Decidi que não posso perder a
oportunidade. Não é? Sei que você concorda comigo. E eu sei que
você me daria a maior força para seguir com isso, por isso não
comentei nada contigo. Queria pensar por mim, sem a pressão do sim
ou do não de alguém a martelar minha cabeça. Um amigo meu topa
dividir o apartamento. É claro que não fechei com ele, quero que
vocês se conheçam.... daí você vê se rola. Você fica com meu
quarto, tá? Tem banheiro e tal... Tô tão feliz!"
Abracei
Laura. Queria prendê-la ali comigo. Para sempre. Não desejei boa
sorte, não falei “parabéns”... nada. Somente a abracei, mesmo
assim ela agradeceu.
Quando
você vai?
"Tenho
ainda mais de dois meses aqui. Dá tempo eu me organizar, acho. Você
me ajuda?"
Claro.
Faremos esses dois meses serem uma eternidade.
Sorriu ao
franzir levemente as sobrancelhas. Correu pro quarto. Laura banhava-se. Enquanto fazia eco no pequeno apartamento a palavra eternidade.
Um fragmento de Neta. Evenice Netíssima.
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