Páginas

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Guilherme e Laura I. [Confiança].

Era madrugada.
Ele lia Bukowski deitado na cama recém adquirida.
Ela abria a porta do apartamento aos prantos ao mesmo tempo em que se desfazia do sapato alto.
Chovia na cidade.
Chovia muito.

Ele deixou o livro de lado e encostou as duas mãos atrás da cabeça, sobre o travesseiro. Pensou nela. Como sempre fazia.
Voltou à leitura depois de um longo suspiro.

Ela pegou o telefone.
Sem titubear discou o mesmo número já conhecido pelo velho aparelho.
Quis desistir. Já era madrugada, afinal. Foi tão rápida, todavia, a ideia da desistência, que esse pensamento efêmero foi dissipado pela voz assustada do outro lado da linha.
- Alô?
- Gui vem aqui, por favor!
- Oi? Mas, mas Laura, são três da madrugada!
- Gui, vem!
- Tá. Tô indo.

Discutir seria perder tempo.
Ele sabia que iria.
A qualquer hora iria.
[...]


Ela ouviu o barulho do opala azul 78.
Correu para abrir a porta ao identificar os passos no corredor do andar do velho prédio.
Ele tropeçou no par de sapatos deixado no meio da porta. Quis acender a luz da sala.
Ela o interrompeu ao desabar nele em um longo abraço. Não segurou o choro.
Ele a abraçou de volta.
Sustentando toda a dor de Laura, disse:
- Que foi?
- Não quero falar agora. Só me abraça?

Ele sabia que tava tudo errado. Sabia exatamente porque estava ali. Sabia que mais um carinha a tinha feito sofrer. Sabia que mais uma vez ele precisaria fazer um grande esforço para ouvir todos os reclames de Laura. Todas as suas dores, decepções e feridas. Ele só não entendia porque fazia isso. Porque sempre cedia. E ela? Porque ela fazia isso com ele?
Ele quis se esquivar. Quis soltá-la, sair dali, fechar  a porta e dirigir até sua casa. Retomaria a leitura do livro. E pronto. Estaria tudo certo.

Respirou fundo, como quem busca coragem num canto escondido. Lá dentro. Sentiu uma lágrima de Laura molhar seu peito. Aquilo feriu sua alma. Tão profundamente que já nem lembrava o que estava pensando a segundos atrás.

- Quando eu mais preciso eu só tenho você, Gui.
Ele pousou a mão no rosto da amiga. Fechou a porta que ainda estava aberta e voltou a abraçá-la. Ela mais uma vez teve a certeza que havia ligado para a pessoa certa.

Depois de um tempo, Laura soluçou mais uma vez. Enxugou as lágrimas. Olhou ternamente o amigo. Deu um sorriso. Foi até a cozinha. Pegou dois copos. Puxou a cadeira. Esticou o braço até o balcão. Abriu uma garrafa de vinho. Despejou nos copos. Começou a falar. Guilherme ouvia tudo. Como tinha que ser.

Quando o sol timidamente anunciava um novo dia, Laura já dormia no sofá.
Ele saiu de mansinho. Fechou a porta. Sentiu o cheiro de café no apartamento vizinho. Ouviu uma mãe pelejando para espantar o sono do pequeno "Vai se atrasar para a escola, menino!". Desceu as escadas cambaleando de sono. Ligou o carro antes de fechar a porta. Saiu lentamente como que para não despertar o sono de alguém querido. Suspirou. Desceu o vidro do carro e limpou o pára-brisa. A chuva cessara, por ora. "Tomara que em Laura também", desejou. Chegou em casa ainda com o cheiro do café na cabeça. Retomou a leitura de onde havia parado. A vida, mais uma vez, tinha que seguir.

"De fé

"a carne cobre os ossos
e colocam uma mente
ali dentro e
algumas vezes uma alma,
e as mulheres quebram
vasos contra as paredes
e os homens bebem
demais
e ninguém encontra o
par ideal
mas seguem na
procura
rastejando para dentro e para fora
dos leitos.
a carne cobre
os ossos e a
carne busca
muito mais do que mera
carne.

de fato, não há qualquer
chance:
estamos todos presos
a um destino
singular.

ninguém nunca encontra
o par ideal.

as lixeiras da cidade se completam
os ferros-velhos se completam
os hospícios se completam
as sepulturas se completam

nada mais
se completa."

Sozinho como todo mundo - Charles Bukowski



Um fragmento de Neta. Evenice Netíssima.

Nenhum comentário: