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sábado, 3 de outubro de 2009

"Atiraste uma pedra..."

Ela desceu do ônibus apressada. Cinquenta e sete minutos atrasada já era demais. Abriu a porta do escritório enquanto torcia para que o chefe tivesse outra vez tido uma crise de cálculos renais na madrugada. Tava sem jeito. "Espero que a senhorita tenha uma boa explicação para isso", dizia o olhar do patrão. E ela quis dizer tudinho de uma só vez. Queria falar da enxaqueca, do calor que fez à noite, do som alto do vizinho, do despertador quebrado, do salto alto, da corrida atrás do ônibus, do empurra-empurra no terminal e, por fim, do engarrafemento nas avenidas...Mas nada disso seria suficiente para explicar o atraso. Ela só conguiu dizer: "desculpe-me". E o dia inteirinho passou. E ela a pensar como seriam os outros dias vindouros. É que na noite anterior ela ouviu conjugado o verbo acabar [na terceira pessoa do singular do pretérito perfeito, pra ser mais objetiva]. Dito com ênfase, firmeza...E, por incrível que pareça, até com certa ternura. Depois disso ela não conseguiu falar mais nada, até a hora do "desculpe-me"; que saiu engasgado, meio soluçado. E foi à noite, no balançar da rede armada na varanda, sob o luar da noite [que só ajudava para intensificar a dor daquela infeliz] que ela conseguiu, enfim, falar. Gritar, diria. Um grito abafado, mas grito. E ela teve noção que ali, exatamente ali, principiava o que há muito já a rondava: o medo da solidão. E a antiga vitrola foi testemunha do pranto primeiro que a embalou.

"Atiraste uma pedra no peito de quem só te fez tanto bem
E quebraste um telhado, perdeste um abrigo
Feriste um amigo
Conseguiste magoar quem das mágoas te livrou
Atiraste uma pedra com as mãos que essa boca
Tantas vezes beijou
Quebraste um telhado
Que nas noites de frio te servia de abrigo
Perdeste um amigo que os teus erros não viu
E o teu pranto enxugou
Mas acima de tudo atiraste uma pedra
Turvando esta água
Esta água que um dia, por estranha ironia
Tua sede matou
Atiraste uma pedra no peito de quem
Só te fez tanto bem"


http://www.youtube.com/watch?v=dxN2oim2Nxw&feature=related



Um fragmento de Neta. Evenice Netíssima.

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